terça-feira, 21 de janeiro de 2025

COLUNAS ANTISSOCIAIS: EVA ESTÁ AQUI


EVA ESTÁ AQUI

Júlio Maria

Jornalista e biógrafo

Aos poucos conheço Eva. Não pelos livros nem pelo cinema, mas pela memória de sua filha, com quem me casei há três meses. Eva não resistiu à sobreposição de eclipses sobre sua luz antes de ser sepultada na indigência da História. Casada com o intelectual comunista Clodomir Santos de Morais, um dos líderes das Ligas Camponesas, ela teve sua coragem e seus sofrimentos sombreados pela coragem e sofrimento dos homens. 


Eva não morou na Zona Sul do Rio nem em Higienópolis. Era uma gaúcha cabocla de poucas palavras que queria capacitar famílias rurais para que elas não precisassem de governos. Viveu parte da infância escravizada em uma fazenda no interior do Rio Grande do Sul, foi abusada por um padrasto e, quando aderiu à resistência armada pelas causas camponesas, abaixou-se para dizer algo olhando nos olhos da filha: “Se um dia eu mandar você correr, corra e não olhe para trás.”

      

Quando tinha 22 anos, em 12 de dezembro de 1962, Eva estava com Clodomir e o motorista em um jipe Aero Willys passando por Parada de Lucas, no Rio. O pneu do carro furou e os policiais apareceram. No interior do veículo havia 72 armas de grosso calibre sendo levadas para municiar camponeses na luta por terras. 


Os três foram conduzidos para a Invernada de Olaria, uma zona de tortura instalada no Rio. Fios foram desencapados e 15 homens se reuniram para seviciá-la enquanto Clodomir apanhava em outra sala. Como se negou a ficar nua, um deles a segurou enquanto outro rasgou sua blusa. A sessão começou com o jogo de peteca: Eva ficava no meio de uma roda para ser esbofeteada. Um tapa a lançava por alguns metros e outro agente a devolvia com outro tapa.

     

Eles a colocaram no pau de arara, mas, como Eva não dizia nada sobre o marido e as Ligas Camponesas, alguém trouxe os fios. Dois deles foram penetrados em seus ouvidos para disparar choques nos tímpanos enquanto outras pontas foram presas à cabeça. Eva só gritava. Colocaram pontas de fios nos bicos dos seios e introduziram outra em sua vagina. Dispararam cargas elétricas até Eva perder os sentidos. Em abril de 1963, uma CPI foi aberta para apurar os exageros da Invernada de Olaria. Eva se tornou a primeira mulher a relatar a tortura no Brasil. E a história nem havia começado.


O Golpe de 1964 levou Eva e o marido de novo à prisão e, em seguida, os obrigou a sair do país. Exilaram-se no Chile e seguiram depois por México, Costa Rica, Honduras, Portugal, Nicarágua e Alemanha Oriental, onde Eva teve a certeza de que sua família estava sendo vigiada pela Stasi, a polícia secreta do regime comunista. 


No dia em que Clodomir, devoto do sistema, a viu com o ouvido colado à parede da sala auscultando ruídos de fios colocados por espiões, decidiu interná-la. Eva chegou a mostrar à filha como os espiões os vigiavam do prédio da frente, mas nada a livrou de passar um ano tomando, desta vez, eletrochoques alemães. Dois anos depois de voltarem ao Brasil, o muro caiu e a espionagem aos brasileiros foi comprovada. 


Clodomir a deixou por uma mulher 35 anos mais jovem. Eva caiu em depressão e morreu de câncer em 2000.  


Novembro de 2024. Saio de uma sessão de “Ainda estou aqui” com Indiana, a filha de Eva. Eu sei por que ela chora. O filme aclamado por tantos justos motivos é asséptico, higienizado e estético. A Zona Sul cuidadosamente contada pela Zona Sul. Até os carros antigos brilham como se a moda fosse encerá-los todos os dias. A trilha sonora traz brasilidades de pista e as Fernandas, filha e mãe, estão leves e tocantes. 


Mostra-se a masmorra, mas não a tortura, e parece importante que um personagem diga algo com repulsa ao revelar as ações do desaparecido Rubens Paiva à sua mulher, Eunice: “Nunca pegamos em armas.” Como filha, Indiana se sente traída pelos únicos mediadores que podem contar às massas sobre o passado mais ameaçador da História do Brasil. 


Como biógrafo, só não me sinto um fracasso porque segurei as mãos de Indiana e disse, enquanto ela chorava: “Chegou a hora de contar a história de sua mãe.”


Nenhum comentário: